Raulino Silva x Raulino Silva,

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Residente na cidade de Caruaru, no agreste pernambucano, Raulino Silva é natural de Antônio Martins, município do estado do Rio Grande do Norte. A cantoria sempre foi uma manifestação comum à esta região do país, no entanto, não agradava ao jovem Raulino, então com dezessete anos de idade. O repente sai pela primeira vez de sua boca quando, numa cantoria, insulta o repentista da noite, dizendo aos amigos que o acompanhavam: “daquele jeito eu também canto”. Raulino é então intimado a fazer melhor e cantar um baião com um dos repentistas. “Eu cantei e achei bom”.

O norteriograndense, que empunha uma arma de cinco cordas, submetido à vontade da platéia, propõe um “duplado” entre personagem e repórter, com o tema: “A seriedade no Repente, na cantoria. Se você quiser escrever um texto sobre isso, eu agradeço”.

          Por Maryanne Paulino e Mayara Bezerra

O menino tornou-se um homem. Hoje, com 36 anos de idade e dezoito anos de carreira, já venceu mais 200 festivais de repente em toda a região Nordeste. O homem que conversa com você, leitor, é sério, presta atenção a cada palavra. A réplica é rápida e o repente é certo. Uma vida dedicada à cantoria concebe a responsabilidade do repentista quanto ao seu preparo e história: “Eu tenho obrigação de improvisar bem. Eu me preparei a vida toda pra isso”.

Em frente a dezenas, centenas ou milhares de pessoas, o repentista se vê obrigado a evocar todos os seus conhecimentos. Ali, a sua função é improvisar, entreter e fazer-se entender. Há, em cada pessoa comum que compõe a plateia, um olhar atento e inquisidor, daquele que não apenas se encanta, mas também julga. “Sempre tem uma pressão. E isso vai apertando o psicológico do cabra”, conta Raulino. A figura de um cantador, segundo o repentista, carrega em si uma segurança inabalável, por esse motivo, acha que é um cantador diferente, que a ele não foi concedido tal característica: “eu não me sinto à vontade em improvisar nada, eu acho sempre um risco muito grande e eu acho que um dia vai acontecer de eu entrar num beco sem saída”. Deslizes já lhe aconteceram, é algo comum para quem está tentando improvisar a todo momento. Mas ele confessa que o que lhe perturba é quando pega assuntos que “não tem o que cantar”. “Não tem o que fazer, você diz coisas fora do assunto, porque você é obrigado a cantar num festival. Por exemplo o tema “só acontece comigo”, e não tem nada que eu saiba que só aconteça comigo, o que acontece comigo acontece com os outros. Mas nós usamos a criatividade pra não perder de cantar. Até hoje eu não sei uma coisa que só acontece comigo”.

O compromisso com o “fazer repente” é algo constantemente recuperado na fala de Raulino Silva. Seu profissionalismo e preocupação com a técnica são aspectos marcantes. “A pessoa obedece a algumas regras de português, de rima métrica e oração.” Sobre a descoberta do improviso, fala que a inspiração leva o cantador a querer exercer a arte, mas em relação ao canto tem uma opinião diferente: “eu acho que é técnica, é informação, é estudo, prática”, não inspiração. Ao que acrescenta falando sobre o maior acesso à informação proporcionado pelo desenvolvimento das novas tecnologias, que se reflete, também, no conteúdo dito nos versos dos repentistas: “Eu acho que os cantores que surgiram assim… de trinta anos pra cá, são cantadores mais atualizados”.

“Se a pessoa é bem informada reflete em tudo que ela vai fazer, incluindo o trabalho”.

Além do trabalho com o repente, Raulino está em fase de produção de um CD de músicas autorais, onde escreve sobre experiências que teve ou que outras pessoas lhe contaram; às vezes uma palavra também traz uma ideia. Ele revela sua preferência: a roedeira. “Eu só sou repentista porque eu não tenho espaço pra cantar roedeira. O CD é de roedeira. Se tiver depressão nem escute. Você vai se jogar na frente do primeiro ônibus que passar”, brinca e ri.

Como um passarinho alçando novos voos, Raulino encontra no novo projeto algo que não consegue tanto no repente: a liberdade. O ausência de compromisso profissional com a música lhe deixa mais tranquilo para fazer as coisas do seu jeito. “Eu faço uma música que eu quero fazer, com uma melodia do jeito que eu quero fazer, e as pessoas que entendam. Quem não entender não tem problema. Também não tô fazendo uma ruedeira de baixa qualidade, tô fazendo uma ruedeira com uma poesia”.

No entanto, o repentista não consegue comparar o prazer da cantoria com a produção para CD. “Não posso dizer que é mais prazeroso que a cantoria, eu sinto alguma prazer em cantar, bastante prazer”. Ele revela ainda a preocupação em manter o vigor e a alegria de cantar, sempre atento a sua responsabilidade com o público: “a gente trabalha com o repente, com a emoção, com o momento. Não tem como as pessoas felizes com a sua presença lhe receberem bem e você não tá feliz, né?”

Convicto, Raulino afirma ser o tipo de pessoa sem vontade de ensinar repente aos filhos (“um rapaz e uma moça”), de cantar com alguém, de trabalhar ‘até 100 anos’. “Eu sou um cara muito sem vontade, vocês já perceberam? Eu sou um cara assim: aparece a oportunidade, eu vou lá e me preparo pra fazer, mas ficar procurando as coisas pra fazer, não. Eu não tenho vontade de nada, na verdade. A única vontade é ficar em casa, deitado, vendo televisão. Eu canto porque cantar é meu trabalho, eu gosto do meu trabalho. Mas vontade… não, não tenho não.”

Vencedor da última edição do desafio de repentistas Estado x Estado com o mote “Se eu cheguei na final não vou deixar / meu parceiro ganhar o Festival”, ele conta que pretende parar de cantar depois dos cinquenta anos de idade: “Você começa a cansar fisicamente. É uma época boa da gente parar. Tem cantador que diz que só quer deixar de cantar quando morrer, que ama. Eu não, eu sou um cara mais pé no chão quanto a isso.”

Simples. O repentista sem vontades vive o que encontrar em seu caminho, versa sobre o que lhe for proposto, tem o improviso na ponta da língua. Guiado pela técnica e o constante aprimoramento, Raulino Silva encontra aí um terreno familiar: “A cantoria é uma mãe, a poesia, o repente… Pra mim tá muito bom. Eu, pra ser sincero, não imaginava que chegasse a tanto”.

29 de julho de 2023
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