Maria Ozana da Silva Memórias Coletivas

No início perguntava-me: De onde essa minha afinidade com o coco?

Maria Ozana da Silva (★ 8 de agosto de 1955) é escritora e poeta, nascida pelas mãos da parteira dos Barrelas, na Rua Manoel Borba, município de Toritama. Ozana, como todos a conhecem. Desde muito jovem, aprendeu o ofício de fazer cocadas, no qual trabalhou até a sua aposentadoria. Essa profissão a trouxe o apelido de Mãe Cocada, na cidade de Toritama, e, assim, possibilitou sua independência financeira. Esse ofício é uma característica que Ozana carrega com muita honra, até o momento atual.

Ozana, acompanhada de sua filha Iris, era percebida pela comunidade somente como uma mulher que vendia cocadas e circulava pelas ruas e facções da cidade de Toritama carregando em suas mãos uma “tapawer” transparente, cheia de cocadas quentinhas. Porém, o que muitas pessoas não imaginam, é que Ozana tem uma paixão profunda pela literatura, tendo o hábito de utilizar a escrita para guardar suas memórias e reflexões acerca da vida. Sua obra está presente em diversas publicações, como Ets e Fenômenos Sobrenaturais” pela editora Alba em 2004; “Amor em Poesia” pela editora Clube de Autores em 2016, no mesmo ano publicou o conto “Hospedando a Felicidade” pelo selo Bibliomundi e da Antologia “Rio de Palavras” literatura em versos e prosa; Foi finalista do Prêmio Off Flip de Literatura 2022 na Categoria Crônica como o texto “Na Casa da Fazenda”, parte da Antologia “Nordestes”. Em 2022 foi selecionada na Antologia “Cartas Para o Futuro” com o texto “O Cronômetro” no Selo Off Flip. Ozana é reconhecida pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, cidade em que, nos anos 70, concluiu o 1º grau, aos 15 anos, e aos 22 anos se profissionalizou como auxiliar de serviços médicos.

Na infância de Ozana, suas maiores lembranças estão guardadas nas águas do Rio Capibaribe. Ozana conta que sua diversão era ir sozinha para o “meio do mundo”, para brincar e observar as margens do rio. Ela conta da inesquecível sensação de entrar nas águas geladas do rio corrente e depois sair para encostar-se nas pedras quentes, imitando como fazia uma lagartixa.  

O Rio Capibaribe, com seu cenário de passagem margeado por águas, é o local onde residem suas maiores lembranças. O Rio não é local apenas de sua diversão, mas principalmente onde via a vida acontecer, seja no trabalho das mulheres lavadeiras, batendo suas roupas contra as pedras e esfregando contra o sabão; ou a relação do tempo, a pesca e os pescadores. Seu modo de ver o mundo, pujante de curiosidade, encontrou barreiras na vida privada e a relação com a família: “Minha mãe e meu pai me tiraram daqui pra tomar jeito de gente, porque eu não tinha jeito de gente…Não tinha o jeito que eles queriam…”

O jeito que eles queriam, o pai e a mãe, é o som que reverberou não só ali, mas ecoa em outros espaços até hoje. Ozana, na sua emancipação, queria o “[…] conhecimento da natureza” no cenário que faz parte de si e se elabora como seu “reino encantado”.

Para Ozana, o Rio não se faz só natureza, mas se faz curiosidade, se faz criatividade ao comparar a composição das imagens que a ordem desordenada se faz. É a televisão antes de seu tempo de invenção. É a relação entre as águas translúcidas nos meandros das pedras “oca de índio”, é o local onde os raios de sol atravessam as águas como um tubo, iluminando cardumes furta-cor de peixes carazebus, peixes gupe e maria buxudas. Com imagem e som, com o sentir dos ventos e das águas, a conversa com os peixes lhe atraía para jogar-se e nadar nas águas do Rio Capibaribe.

Ela assistia a tudo, com imagem e som, e conversava com os peixes, segurando sua vontade de se jogar na água”

A partir dos registros literários da autora, é possível redesenhar um território agrestino, configurando uma paisagem a partir das suas memórias, cenários oníricos e relatos ancestrais, que elaboram uma memória coletiva onde seria possível coexistir com a natureza. Para Ozana, a vendedora de cocadas, lhe serviu o coco de mote poético, e, para o coco, lhe serviu Ozana, com o sabor da palavra. Em sua obra “Amor em poesia”, publicação independente, Ozana descreve sua sensibilidade para com o mundo. Página 158:

 

Coco.

“O coqueiro é parecido e é diferente. Coco é como mama de mulher. Tem uma diversidade de formatos: Grandes, pequeno, feios e bonitos, bons e, ruins, que as vezes merecem ser extirpados, firmes ou flácidos. O coqueiro ao contrário da mulher tem grande quantidade de peitos e é grande a diferença; Além do leite e da água, da casca e do quengo, o coco dá óleo e também dá cocada.

E tem também o Coco de Roda, dança típica nordestina. Embora se pense que é uma fruta, é semente.  

Nisso, coco é parecidíssimo com mama de mulher, o peito materno também é semente; semente de amor. 

Passei a vida toda selecionando cocos, quebrando cocos, raspando cocos e mexendo cocadas, cortando cocadas e vendendo cocadas: ‘Delícia dos Deuses’. 

No início perguntava-me: 

De onde essa minha afinidade com o coco? Com o tempo percebi, conhecendo culturas, que possuo resquícios africanos dos meus antepassados. Há quem compare o coco com ‘cocão’ (crânio humano), que protege os miolos;  E outros, só tem cachaça no ‘coco e no quengo’. Outros equiparam coco com testículos, tudo tão diferente e tão parecido ao mesmo tempo. 

Eu aceito a comparação; Sendo que coco é semente e, testículo guarda semente de vida no leite. Pode parecer obsceno vindo de minha parte, mas apenas escrevi a verdade cheia de graça, que não é piada alguma.”

Ozana, é uma mulher de muitas histórias, estas que estão para além do plano objetivo. Poderia dizer, também, de acessos mediúnicos, como ela própria conta a história, no documentário Flor do Coco (2024), sobre a experiência em que viu seu avô se manifestar para lhe entregar respostas. Flor do Coco faz parte da série Mestres de Toritama, que busca registrar a memória de mestres e mestras da cultura popular e das artes de Toritama-PE.

Ozana dedicou-se a escrever histórias de maneira independente a vida inteira. Em Toritama, onde eram mínimos os recursos para o exercício da escrita, fascina conhecer uma pessoa que se dispôs a escrever sobre as perguntas inexplicáveis do desejo, assim como se projetar além das limitações terrenas e tecer sobre suas experiências.

Sua obra “Ets e Fenômenos Sobrenaturais” (2004) , único livro que não consegui recuperar, descreve sobre histórias “folclóricas”, como a história do lobisomem de “Lanzudo” e as visitas extraterrestres que ela experienciou em sonhos. O livro é listado em “A Ufologia nos projetos pedagógicos das instituições de ensino”, listagem oferecida pelo professor Max Reis, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Ler a obra de Ozana é um convite a conhecer um território, um pedaço da memória coletiva sobre o Rio Capibaribe, uma poética agrestina que é parte da identidade dessa região e da capacidade crescente de uma vendedora de cocadas-autora e seus sonhos.

Mulher da Cocada é Escritora Reconhecida

11 de maio de 2024

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